Missão Ortodoxa da Proteção da Mãe de Deus
Igreja Ortodoxa Russa - Patriarcado de Moscou
Diocese da Argentina, Brasil e América do Sul
Toda Escritura é divinamente inspirada

Metropolita Kallistos de Diocleia

 

Toda Escritura é divinamente inspirada (2Timóteo 3:16)

 

"Se um rei terreno, o nosso imperador", disse São Tikhon de Zadonsk (1724-83), "lhe escrevesse uma carta, acaso tu não ficarias feliz ao lê-la? Com toda certeza se alegraria muito, assim como a leria com bastante atenção". Porém, ele questiona, qual é a nossa atitude acerca da carta endereçada a nós por ninguém menos que o próprio Deus? "Você recebeu uma carta, não da parte de um imperador terreno, mas do punho do próprio Rei do Céu. E, no entanto, você praticamente despreza esse presente, cujo valor é inestimável". Afinal, abrir e ler esta carta, acrescenta São Tikhon, é o mesmo que iniciar uma conversa pessoal, face a face, com o Deus vivo: "Em toda leitura do Evangelho, o próprio Cristo está falando conosco, e na medida em que lemos, estamos orando e falando com Ele".

 

Tal postura designa precisamente o nosso entendimento (ortodoxo) sobre a leitura das Escrituras: devemos encarar a Bíblia como uma carta pessoal, escrita por Deus e enviada a cada um de nós. Seu conteúdo não diz respeito apenas a um conjunto de pessoas que viveu séculos atrás em lugares distantes; são palavras escritas direta e particularmente para mim e para você, aqui e agora. Dizendo de outra forma, quando abrimos nossas Bíblias, entramos em um diálogo dinâmico com o Salvador — e ao ouvir, também respondemos: "Fala, pois teu servo escuta", declaramos a Deus ao lermos I Samuel 3:10, e "Eis-me aqui", quando lemos Isaías 6:8.

 

Dois séculos depois de São Tikhon, durante a chamada Conferência de Moscou (realizada em 1976 entre ortodoxos e anglicanos), a verdadeira perspectiva acerca das Escrituras foi expressa em termos diferentes, porém igualmente válidos, em uma declaração conjunta, assinada por delegados de ambas as tradições, e que serve como um excelente resumo do entendimento ortodoxo sobre o assunto. Vejamos:

 

"As Escrituras constituem uma unidade coerente; são divinamente inspiradas e, ao mesmo tempo, se expressam humanamente; têm autoridade para testemunhar a revelação de Deus de Si-Mesmo na criação, na Encarnação do Verbo e em toda a História da Salvação, e como tal, manifestam a Palavra de Deus em linguagem humana. 

 

Conhecemos, recebemos e interpretamos as Escrituras através da Igreja e na Igreja. Nossa abordagem a respeito da Bíblia é de obediência".

 

Somadas, as palavras de São Tikhon e a Declaração de Moscou fornecem pelo menos quatro características básicas que marcam a "mentalidade bíblica" da Ortodoxia. Primeiramente, nossa leitura das Escrituras é caracterizada pela obediência. Em segundo lugar, é eclesial (ocorre em união com a Igreja). Em terceiro lugar, é Cristocêntrica. E em quarto lugar, é pessoal.

 

Lendo a Bíblia a partir da Obediência

 

Antes de mais nada, enxergamos nas Escrituras a inspiração de Deus e, portanto, nos aproximamos dela em espírito de obediência. A inspiração divina da Bíblia é enfatizada tanto por São Tikhon, quanto pela Conferência de Moscou de 1976: as Escrituras (a Bíblia) como "uma carta" escrita pelo "Rei do Céu", conforme nos diz São Tikhon, na qual "O próprio Cristo está falando conosco", possuindo ainda, conforme a Conferência, "autoridade para ser testemunha" de Deus e para expressar "a Palavra de Deus em linguagem humana". Logo, nossa postura perante tal Palavra Divina não poderia ser outra que não a inclinação obediente: afinal, na medida em que lemos, nos debrussamos sobre o Espírito. 

 

Sendo divinamente inspirada, a Bíblia é marcada por uma unidade fundamental, uma coerência plena, porque é o mesmo Espírito Quem fala em todas as páginas. Por esse motivo não a chamamos de "os livros", do plural ta biblia, mas de "A Bíblia", "O Livro", no singular. É um livro, uma Sagrada Escritura, que exprime uma mesma mensagem através de uma narrativa diversificada, porém única, de Gênesis a Apocalipse.

 

Contudo, a Bíblia também é uma expressão humana, organizada como uma compilação de escritos distintos, elaborados em diferentes épocas, por pessoas diferentes e em circunstâncias completamente diversas. Por meio dela, Deus falou "muitas vezes e de diversos modos" (Heb. 1:1). Na Bíblia, cada obra reflete a perspectiva do tempo em que foi escrita, bem como o ponto de vista pessoal do autor — porque Deus não abole nossa pessoalidade subjacente, antes, expande-a. Aqui, a graça divina coopera com a liberdade humana: somos "cooperadores" e colaboradores de Deus (I Cor. 3:9). Nas palavras da Epístola a Diogneto (escrito do séc. II): "Deus direciona, não obriga, uma vez que a violência é estranha à Natureza Divina". E é assim, exatamente, que ocorre na elaboração (inspirada) das Escrituras: seus autores não foram meramente instrumentos passivos, flautas tocadas pelo Espírito, máquinas de escrever processando uma mensagem. 

 

Nas Escrituras, cada autor contribui com seus próprios dons humanos, de modo que junto ao aspecto divino, há também o elemento humano, que também deve ser valorizado. Cada um dos quatro evangelistas, por exemplo, resguarda seu próprio ponto de vista singular a respeito dos fatos. Dos quatro, Mateus é o mais "eclesiástico" e o mais judeu, tendo um interesse especial na relação do Evangelho com a lei judaica (ele entende o Cristianismo como a "Nova Lei"). Marcos escreve em um grego mais prosaico, mais próximo da linguagem comum, e inclui detalhes narrativos vívidos que não se encontram nos outros evangelhos. Lucas enfatiza a universalidade do amor de Cristo e a amplitude de Sua compaixão, que se estende do mesmo modo a judeus e gentios. Já o Quarto Evangelho expressa uma abordagem mais interior e mística, sendo apropriadamente caracterizado por São Clemente de Alexandria como "um Evangelho espiritual". Devemos explorar e desfrutar ao máximo tal variedade vivificante dentro da Bíblia. 

 

Vale também frisar que, uma vez que as Escrituras (a Bíblia) são, como ressaltamos, a Palavra de Deus expressa em linguagem humana, é perfeitamente possível submetê-las a um exame crítico honesto e rigoroso. Nosso cérebro racional é um dom de Deus e não precisamos ter medo de usá-lo ao máximo ao ler as Escrituras. Apesar disso, muitos cristãos ortodoxos comumente negligenciam e consideram perigosos os resultados da pesquisa acadêmica independente acerca das origens, datação e autoria dos livros bíblicos (muito embora seja verdade que sempre devamos ponderar esses resultados à luz da Santa Tradição). 

 

Para além do elemento humano, no entanto, estamos sempre diante do aspecto divino, ou seja, de textos que não se reduzem aos esforços literários de certos escritores individuais. Dizendo de outra maneira, o que ouvimos das Escrituras não são apenas palavras humanas caracterizadas por uma maior ou menor habilidade narrativa, mas a Palavra Incriada de Deus: a Palavra do Pai "saindo do silêncio", para usarmos a expressão de Santo Inácio de Antioquia. A Palavra Eterna da Salvação. Isso quer dizer que nossa aproximação com a Bíblia não deriva apenas da mera curiosidade por informações históricas, mas de uma indagação fundamental: "Como posso ser salvo?". Neste sentido, podemos dizer que a inclinação obediente à Palavra de Deus significa basicamente duas coisas: (1) sentimento de perplexidade e (2) posição de escuta. 

 

(1) A perplexidade desaparece facilmente. Afinal, não é verdade que muitas vezes sentimos que a leitura da Bíblia se tornou excessivamente mais do mesmo e até entediante para nós? Não acabamos perdendo, às vezes, aquele sentido de alerta e expectativa? Até que ponto somos mudados pelo que estamos lendo? Daí a necessidade de estarmos sempre renovando a nossa percepção, olhando com novos olhos, de admiração e espanto, para o milagre que está diante de nós — o sempre presente milagre da Palavra Divina da Salvação expressa em linguagem humana. Pois como bem observou Platão: "O princípio da verdade é o espanto diante das coisas". 

 

Há alguns anos, tive um sonho do qual ainda me recordo em detalhes. Eu estava de volta ao colégio interno onde morei por três anos quando criança. Um amigo então logo aparecia e me guiava através dos cômodos (que eu já conhecia e lembrava daquele tempo). Mas então, no sonho, nós começávamos a entrar também em salas que eu nunca tinha visto antes (espaçosas, arrumadas, iluminadas). Era aí que chegávamos a uma pequena capela escura, onde havia alguns mosaicos dourados brilhando à luz de velas. "Que estranho", disse eu ao meu colega, "vivi aqui por tanto tempo e mesmo assim nunca soube que esses espaços existiam". Ao que ele me respondeu: "Mas é sempre assim". Acordei e percebi que era um sonho. Ora, não deveríamos reagir assim na presença da Bíblia, exatamente com a mesma perplexidade, com o mesmo sentimento de alegria e de novidade que experimentei em meu sonho? Há tantas salas nas Escrituras que ainda não entramos. Ainda há muito a explorar.

 

(2) Se é verdade que a obediência conduz à perplexidade, também é verdade que obedecer implica em escutar. É esse, aliás, o significado literal da palavra "obedecer" em grego e latim: ouvir. O problema é que a maioria de nós é melhor falante do que ouvinte. Um caso ocorrido durante um programa, que eu costumava acompanhar na rádio nos meus tempos de estudante, ilustra bem o que quero dizer. O telefone toca e um dos apresentadores atende: "Bom dia!", ele exclama, enquanto o volume de seu microfone aumenta sem ele perceber. "Alô! Quem fala? Não estou ouvindo. Alô, quem fala?". Ao que o ouvinte, do outro lado, responde: "Oras, quem está falando é você!", desligando em seguida. A moral da história é que se quisermos ser presenteados com uma "mentalidade escriturística", o requisito básico é parar de falar e começar a ouvir. 

 

Quando entramos numa Igreja Ortodoxa, ornamentada à maneira tradicional, e olhamos para o Santuário, vemos lá, na abside, a figura da Mãe de Deus com as mãos estendidas ao céu: a antiga maneira escriturística de orar, que muitos usam até hoje. Ora, essa também deve ser a nossa atitude em relação às Escrituras: uma atitude de abertura e de inclinação atenta, com nossas mãos invisivelmente estendidas ao céu. Ao lermos nossas Bíblias, devemos nos moldar exatamente assim, através da Santíssima Virgem Maria, pois ela é supremamente aquela que ouve. 

 

Na Anunciação, ao ouvir o anjo, ela obedientemente responde: "Seja feito em mim segundo tu disseste" (Lucas 1:38). Ora, se ela não tivesse escutado a Palavra de Deus antes de qualquer coisa, acolhendo-a espiritualmente em seu coração, ela nunca teria suportado a Palavra de Deus em seu ventre. E a escuta receptiva continua sendo sua atitude característica ao longo da narrativa do Evangelho. Na Natividade de Cristo, depois da adoração dos pastores, está escrito que "Maria guardou todas essas coisas e ponderou-as em seu coração" (Lucas 2:19), e após a visita à Jerusalém, quando Jesus tinha doze anos de idade, "Sua mãe guardava todas estas coisas em seu coração" (Lucas 2:51). 

 

A importância vital da escuta também é evidenciada nas últimas palavras atribuídas à Theotokos na Sagrada Escritura, durante a festa de casamento em Caná da Galiléia: "Fazei o que ele vos disser" (João 2:5), diz ela aos servos — e a cada um de nós.

 

Em tudo isso, a Virgem serve como um espelho e um ícone vivo do cristão bíblico. Ao ouvir a Palavra de Deus, devemos ser como ela: meditar naquilo que ouvimos, guardar tudo em nossos corações e fazer tudo o que Ele nos disser para fazer. Devemos ouvir, em obediência, enquanto Deus fala.

 

-Compreendendo a Bíblia a partir da Igreja

 

Voltemos à Conferência de Moscou:"Conhecemos, recebemos e interpretamos as Escrituras por meio da Igreja e na Igreja". 

 

Nosso entendimento bíblico não se resume à obediência: ele também é eclesial. Isso significa que o conteúdo das Escrituras é endereçado a nós como pessoas e como membros de uma comunidade. Escritura e Igreja não devem ser separadas. A interdependência Igreja-Bíblia é evidente de pelo menos duas formas:

 

Primeiro, nós recebemos a Escritura através da e na Igreja. É a Igreja quem nos diz o que é Escritura. Nos primeiros três séculos da história cristã, um longo processo de filtragem e confirmação foi necessário para distinguir entre o que era autenticamente "canônico" nas Escrituras — isto é, o que possuía o testemunho legítimo da Pessoa e da Mensagem de Cristo — e o que era "apócrifo" — ​​útil para ensinar, talvez, mas não uma fonte doutrinária normativa. Foi assim que a Igreja decidiu quais livros formariam o canon neo-testamentário, de modo que pode-se dizer que um livro integra às Sagradas Escrituras, não por conta de qualquer teoria particular a respeito de sua data ou autoria, mas porque a Igreja reconhece sua canonicidade. Suponhamos, por exemplo, que possa ser provado que o Quarto Evangelho não foi realmente escrito por São João, o discípulo amado de Cristo (ao meu ver, há fortes razões para continuar aceitando a autoria joanina): ainda assim, isso não alteraria o fato de que consideramos o Quarto Evangelho como Escritura. Por quê? Porque o Quarto Evangelho, independente de quem o tenha escrito, é aceito pela Igreja e na Igreja.

 

Em segundo lugar, nós interpretamos as Escrituras através da e na Igreja. Se é a Igreja quem nos diz o que é Escritura, também será a Igreja quem nos dirá como a Escritura deve ser entendida. 

 

Ao se aproximar do Etíope que lia o Antigo Testamento em sua carruagem, Filipe, o Diácono, perguntou-lhe: "Você entende o que lê?", ao que o Etíope respondeu: "Como posso, se ninguém me explica?" (Atos 8:30-31): a dificuldade dele é a nossa dificuldade. O que é dito nas Escrituras nem sempre é auto-evidente. A Bíblia possui uma maravilhosa simplicidade, mas quando estudada em detalhes, pode ser um livro difícil. É verdade que Deus fala diretamente aos nossos corações quando lemos as Escrituras — como diz São Tikhon, nossa leitura é um diálogo pessoal entre cada um de nós e o próprio Cristo —, mas isso não significa que não precisemos de orientação. Precisamos, e nosso guia é a Igreja. Devemos, sim, usar plenamente da nossa compreensão pessoal (iluminada pelo Espírito) em coordenação com certos comentários bíblicos e com certos achados de pesquisa modernos. No entanto, independente da nossa opinião ou do parecer dos estudiosos, nós submeteremos tudo ao juízo da Igreja.

 

Lemos a Bíblia pessoalmente, sim, mas não como indivíduos isolados. Não se trata do "eu", mas do "nós", ou seja, de uma leitura como membros de uma família — a família da Igreja Católica Ortodoxa: nossa leitura ocorre em comunhão com todos os outros membros do Corpo de Cristo, em todas as partes do mundo e em todas as gerações. Tal abordagem em comunidade (ou católica) da Bíblia é sublinhada em uma das perguntas feitas a um convertido durante o serviço de recebimento realizado na Igreja Russa: "Você reconhece que a Sagrada Escritura deve ser aceita e interpretada de acordo com a abordagem aceita por nós, estabelecida pelos Santos Padres e que a Santa Igreja Ortodoxa, nossa Mãe, sempre reconheceu e ainda reconhece?". 

 

Logo, o critério decisivo no que tange ao sentido das Escrituras, em nosso entendimento, é a mentalidade da Igreja. Mas para compreender tal mentalidade, por onde começamos? Um primeiro passo é observar como as Escrituras são usadas na adoração; particularmente, quais passagens bíblicas são lidas nas diferentes festas. Um segundo passo é consultar os escritos dos Padres da Igreja, especialmente os de São João Crisóstomo: como eles analisam e aplicam os textos das Escrituras? Deste modo, uma maneira eclesial de ler a Bíblia será tanto litúrgica quanto patrística.

 

Para ilustrar o que significa interpretar as Escrituras de maneira litúrgica, vejamos quais são as passagens do Velho Testamento lidas nas Vésperas da Festa da Anunciação (25 de março) e do Sábado Santo (a primeira parte da antiga Vigília Pascal). Na Anunciação, há cinco leituras:

 

(1) Gênesis 28:10-17 — O sonho de Jacó acerca da construção de uma escada que liga Terra e Céu;

 

(2) Ezequiel 43:27-44 — A visão do profeta do Templo de Jerusalém com os portões fechados, no qual ninguém, exceto o Príncipe, poderia passar;

 

(3) Provérbios 9:1-11 — Uma das grandes passagens sapienciais do Antigo Testamento, que começa dizendo: "A sabedoria edificou sua casa";

 

(4) Êxodo 3:1-8 — Moisés e a sarça ardente;

 

(5) Provérbios 8:22-30 — Outro texto sapiencial, que descreve o lugar da Sabedoria na Providência Eterna de Deus: "O Senhor me criou, como primíciade suas obras, desde o princípio, antes do começo da terra". 

 

Em tais passagens veterotestamentárias, o que temos na verdade é uma sequência poderosa de símbolos que indicam o papel de Theotokos no desdobramento do Plano de Salvação de Deus: ela é a Escada de Jacó, pois através dela, Deus desce e entra no nosso mundo, assumindo a carne derivada dela; ela é Mãe e, ao mesmo tempo, sempre Virgem: Cristo nasce dela, mas ela permanece inviolada, isto é, com o portão de sua virgindade selado; ela provê a humanidade (ou casa) que Cristo, a Sabedoria de Deus (I Cor. 1:24), assume como Sua morada (alternativamente, ela própria deve ser considerada a Sabedoria de Deus); ela é a Sarça Ardente, que carrega em seu ventre o Fogo Incriado da Divindade e, mesmo assim, não é consumida; e desde a eternidade, "antes do começo da terra", foi profetizado que ela seria a Mãe de Deus.

 

A partir de um contexto veterotestamentário original, podemos não entender imediatamente que estas passagens prefiguram a Encarnação do Salvador na Virgem. No entanto, explorando o modo como o Antigo Testamento é concebido no lecionário da Igreja, descobrirmos camadas e mais camadas de significados que estão longe de ser óbvias à primeira vista. A mesma coisa acontece quando examinamos como as Escrituras são usadas no Sábado Santo (um total de quinze passagens do Antigo Testamento). Lamentavelmente, em várias paróquias, a maioria desses textos são omitidos e o povo de Deus acaba ficando faminto do seu próprio alimento bíblico: afinal, essa longa sequência de leituras nos apresenta nada menos que o sentido profundo do percurso de Cristo através da morte para a Ressurreição. 

 

A primeira passagem é o relato da criação (Gen.1:1-13): a Ressurreição de Cristo é a Nova Criação (II Cor. 5:17/Apo. 21:5), a inauguração de uma Nova Era, de um porvir. 

 

A terceira passagem descreve o rito judaico da refeição pascal: Cristo Crucificado e Ressuscitado é a Nova Páscoa, o Cordeiro Pascal que, sozinho, tira o pecado do mundo (I Cor. 5:7/ Jo. 1:29). 

 

A quarta passagem é o livro de Jonas inteiro: os três dias do profeta na barriga do peixe prenunciam a Ressurreição de Cristo depois de três dias no túmulo (Mateus 12:40). 

 

A sexta leitura narra a Travessia do Mar Vermelho pelos israelitas (Ex. 13:20, 15:19): Cristo nos conduz da escravidão do Egito (pecado), através do Mar Vermelho (batismo), para a Terra Prometida (a Igreja). 

 

A passagem final é a história dos três Santos Jovens na fornalha ardente (Dan. 3) como um "tipo" que prefigura Cristo saindo da tumba.

 

Considerando tudo isso, a pergunta a ser feita é: como podemos desenvolver este modo eclesial e litúrgico de ler as Escrituras nos grupos de estudos bíblicos de nossas paróquias? Uma pessoa pode receber a tarefa de tomar nota sempre que uma passagem específica é lida em uma festa, ou em dia dedicado a um santo, e o grupo pode então discutir as razões pelas quais ela foi escolhida. Outros no grupo podem receber a tarefa de pesquisar os escritos dos Padres em casa, se baseandosobretudo nas homilias bíblicas de São João Crisóstomo (disponíveis em inglês na série Niceneand Post-Nicene Fathers, reeditada pela Eerdmans). Inicialmente, podemos nos frustrar: a maneira de pensar e falar dos Santos Padres é geralmente diferente da maneira atual. Mas se formos persistentes e imaginativos, descobriremos tesouros nos textos patrísticos.

 

Cristo, o coração da Bíblia

 

O terceiro ponto de nosso entendimento da Escritura consiste na compreensão de Cristo como seu centro. Uma vez que concordamos com a Conferência de Moscou de 1976, quando ela diz que as "Escrituras constituem um todo coerente", podemos nos perguntar: qual é o fundamento desta integralidade e coerência? Ora, a Pessoa de Cristo. Ele é a teia de unidade que perpassa toda a Bíblia, do começo ao fim. Jesus aparece para nós em todas a páginas. Tudo é ligado por causa dEle:"nEle, todas as coisas subsistem" (Col. 1:17).

 

Hoje, diversos estudos acadêmicos sobre as Escrituras (ocidentais e modernos) vêm adotando uma abordagem analítica que consiste em dividir cada livro bíblico naquilo que se consideram sersuas fontes primárias. Os elos de ligação são assim decodificados e a Bíblia é reduzida a um conjunto de unidades isoladas. Recentemente, tem havido uma reação contra essa linha por parte de alguns estudos críticos da Bíblia no Ocidente, que vêm dando uma maior ênfase à maneira pela qual tais unidades primárias chegaram a se juntar. Isso é algo que nós, ortodoxos, certamente acolheremos. Precisamos enxergar a unidade das Escrituras, bem como sua diversidade: o fim abrangente e os inícios dispersos. A Ortodoxia, de modo geral, prefere uma linha hermenêutica "sintética" ao invés de analítica, concebendo a Bíblia como um todo integrado, com Cristo em toda parte como elo de unidade. A propósito, essa é precisamente a implicação de se ler as Escrituras dentro do contexto da adoração da Igreja. Como as lições da Anunciação e do Sábado Santo deixam claro, em todo o Antigo Testamento podemos ver sinais e evidências que apontam para o Mistério de Cristo e de Sua Mãe, Maria. Interpretando o Antigo Testamento à luz do Novo, e Novo à luz do Velho (como o lecionário da Igreja nos encoraja a fazer), descobrimos como toda a Escritura encontra seu ponto de convergência no Salvador.

 

A Ortodoxia recorre extensivamente a esse método "tipológico" de interpretação, que visa detectar "tipos" de Cristo (sinais e símbolos de Sua Obra) em todo o Antigo Testamento. Melquisedeque, por exemplo, o rei-sacerdote de Salém que ofereceu pão e vinho a Abraão (Gen. 14:18), é considerado um "tipo" de Cristo, não só pelos Padres, mas pelo próprio Novo Testamento (Heb. 5:6, 7:1-19). A Rocha de onde jorrava água no deserto do Sinai (Ex. 17:6/Num. 30:7-11) é também um símbolo de Cristo (I Cor. 10:4). E é essa tipologia que justificará, por exemplo, a escolha das passagens lidas, não apenas durante o Sábado Santo, mas ao longo da segunda metade da Quaresma: por que a figura de José aparece tanto nas leituras do livro de Gênesis na sexta semana? Por que ler o Livro de Jó na Semana Santa? Porque ambos, José e Jó, sofreram como inocentes, preconizando o sofrimento de Cristo na Cruz. 

 

É possível também encontrar várias outras correspondências como essas, entre Antigo e Novo Testamento, com o suporte de uma concordância bíblica (muitas vezes, o melhor comentário bíblico é uma simples concordância, ou uma edição da Bíblia com referências cruzadas selecionadas). 

 

Conecte as coisas. Na verdade, tudo já está conectado. Nas palavras do Pe. Alexander Schmemann: "Um cristão é aquele que, para onde quer que olhe, enxergará Cristo em toda parte e se alegrará nEle" . Este é um traço definitivo do cristão bíblico: para onde ele olha, em todas as páginas, ele vê Cristo em tudo.

 

 

A Bíblia como Pessoal

 

Nas palavras de São Marcos, o Monge (ou "Marcos, o Asceta", que viveu entre o quinto e o sexto século), "aquele que nutre pensamentos humildes e se dedica à obra espiritual, quando lê as Sagradas Escrituras, aplica tudo a si mesmo, e nunca ao outro". 

 

As Escrituras devem ser examinadas visando uma aplicação pessoal. Nossa indagação tem que partir do "O que isso significa?" para o "O que isso significa para mim?". Como São Tikhon insiste: "O próprio Cristo está falando conosco". A Escritura é um diálogo íntimo e direto entre o Salvador e eu: Ele se dirige a mim e meu coração responde. Esse é o quarto ponto do nosso entendimento bíblico.

 

Devemos encarar toda a narrativa das Escrituras como parte da nossa própria história de vida. A descrição da Queda de Adão é um relato sobre uma experiência que nos é própria. Afinal, quem é Adão? Seu nome significa, simplesmente, "homem", "humano": nós somos Adão. É para nós que Deus pergunta: "Onde estás?" (Gen. 3:9) — muitas vezes perguntamos onde Deus está, mas a pergunta autêntica é aquela colocada por Deus a Adão (e a cada um de nós): "Onde estás?". 

 

Quem é Caim, aquele que mata o próprio irmão? Sou eu. E a indagação de Deus — "Onde está Abel, teu irmão?" (Gen. 4:9) — se dirige ao Caim que há em mim: afinal, o caminho para Deus reside no amor ao próximo (não há outro caminho), de modo que, quando desprezo minha irmã ou irmão, troco a Imagem de Deus pela Marca de Caim, negando minha própria natureza enquanto ser humano.

 

Tal critério de aplicação pessoal fica ainda mais evidente nos serviços da Quaresma, especialmente no Grande Cânon de Santo André de Creta, que diz: "Eu sou o homem que caiu entre os ladrões" (ver Lucas 10:30); "Eu sou o teu filho mais novo que desperdiçou a riqueza que me deste [...] e agora está faminto" (ver Lucas 15:11-14). 

 

"Quem são as ovelhas e quem são os bodes?", costumavam perguntar os Padres do Deserto do Egito (ver Mat. 25:31-46). E respondem: "Deus conhece as ovelhas", mas "quanto às cabras, trata-se de mim". 

 

Neste sentido, três passos devem ser dados ao lermos as Escrituras a partir deste prisma: 

 

Primeiro, entender que o que temos nas Escrituras consiste em uma História Sagrada: a história do mundo desde a criação; a história do povo escolhido de Deus; a história do próprio Deus Encarnado (especificamente na Palestina); a história das "grandes maravilhas" (Atos 2:11) realizadas após o Pentecostes. Nunca devemos perder de vista que o que encontramos na Bíblia não consiste em uma ideologia, nem em uma teoria filosófica, mas em uma fé histórica.

 

Segundo, observar as particularidades e as peculiaridades desta mesma História Sagrada. Na Bíblia, vemos Deus intervindo em momentos específicos, em lugares específicos e dialogando com seres humanos específicos. Vemos os diversos chamados emitidos por Deus a diversas pessoas: a Abraão, a Moisés e Davi, a Rebeca e Rute, a Isaías e aos profetas. Contemplamos Deus encarnado uma e só uma vez, em um canto particular do Terra, em um momento singular e a através de uma determinada Mãe. Ora, todas essas particularidade devem ser postas na mesa, não como ocasiões para polêmicas, mas sim como bênçãos: o Amor Divino é universal em seu escopo, mas sempre pessoal em sua expressão.

 

Entender tais especificidades bíblicas é um elemento chave na "mentalidade escriturística" ortodoxa. Se amamos a Bíblia de verdade, também amamos genealogias e detalhes cronológicos e geográficos. Uma das melhores maneiras de impulsionar o estudo das Escrituras, por exemplo, é ir em uma peregrinação pela Terra Santa: andar onde Cristo andou; chegar perto do Mar Morto; subir a montanha da Tentação (sentindo Sua desolação e imaginando como Cristo deve ter se sentido durante Seus quarenta dias sozinho no deserto); beber do poço de onde Jesus falou com a mulher samaritana; pegar um barco no Mar da Galiléia e pedir para o piloto parar o motor para poder observar, em silêncio, através das águas; ir à noite ao Jardim do Getsêmani e sentar-se no escuro, sob as antigas oliveiras, olhando as luzes da cidade através do vale; etc. 

 

Terceiro, depois de reviver a história bíblica em suas particularidades, devemos aplicar tudo diretamente a nós mesmos, dizendo: "Esses não são apenas lugares distantes, eventos no passado remoto, mas pertencem ao meu próprio encontro com o Senhor. Estou incluso nessas histórias". 

 

A traição, por exemplo, faz parte da história pessoal de todos nós. Afinal, todos já não traímos alguém em dado momento de nossas vidas e também não sabemos bem como é ser traído? Não é verdade que a lembrança de tais coisas deixa cicatrizes profundas e contínuas em nossas psiques? Neste sentido, quando lemos o relato da traição de São Pedro a Jesus, bem como o de sua posterior restauração após a Ressurreição, emergimos como atores daquela história: meditando acerca do que Pedro e Cristo experimentaram no momento imediatamente posterior à traição, absorvemos os seus sentimentos como sendo nossos. No contexto da traição, eu sou Pedro, mas também não posso ser como Cristo? Refletindo sobre o momento da reconciliação, vendo como o Salvador Ressurreto, com Seu amor totalmente desprovido de sentimentalismos, restaurou o caído Pedro à Comunhão, e vendo como Pedro, diante dEle, teve humildade e coragem para aceitar essa restauração, devemos nos perguntar: como podemos ver Cristo naqueles que nos traíram? E quanto aos meus próprios atos de traição, sou capaz de aceitar o perdão dos outros — sou capaz de me perdoar?

 

Meditemos também acerca da "mulher pecadora" que esvaziou um frasco de unguento sobre os pés de Cristo (Lucas 7:36-50), que alguns acreditam se tratar de Santa Maria Madalena (embora essa não seja a interpretação ortodoxa mais aceita). Posso ver minha imagem refletida nela? Compartilho da sua generosidade, da sua espontaneidade e da sua iniciativa amorosa? Afinal, "Seus pecados, que são muitos, são perdoados, porque ela amou muito". Ou sou calculista, vacilante, que nunca me envolvo completamente com nada, seja bom ou ruim? Como diziam os Padres do Deserto: "Melhor aquele, que pecando, sabe que pecou e se arrepende, do que aquele não pecou e se pensa justo". 

 

Uma abordagem pessoal, portanto, implica que, na leitura da Bíblia, não somos meros expectadores, imparciais e objetivos, que colhem dados e tomam notas de fatos. A Bíblia não é um simples compêndio literário e nem só uma coleção de documentos históricos (embora certamente possa ser abordada nesse nível), mas algo muito mais profundo: um livro sagrado, dirigido aos que creem, que deve ser lido com fé e amor. Não nos beneficiaremos completamente da leitura dos Evangelhos a não ser que estejamos apaixonados por Cristo. "Um Coração fala a um coração". Isso quer dizer que, para penetrar na Verdade Viva das Escrituras, meu coração precisa responder com amor ao Coração de Deus.

 

Diante de todas essas coisas, isto é, ao lermos as Escrituras da maneira aqui exposta — em obediência; como membro da Igreja; enxergando Cristo em toda parte e lendo tudo como se tratando da minha própria história de vida — poderemos sentir algo do poder e da cura emanadas da Bíblia. E ainda assim, nossa expedição bíblica está sempre no começo: diante dela, somos como alguém a bordo de um barquinho em um imenso oceano. Porém, por maior que seja a jornada, podemos embarcar nela hoje, agora, neste exato momento.

 

No ápice de sua crise espiritual, lutando consigo mesmo, sozinho em um jardim, Santo Agostinho ouviu a voz de uma criança, que dizia: "Pegue, leia, leia e leia". Ele pegou sua Bíblia e leu, e o que leu, alterou radicalmente a sua vida. Que façamos o mesmo, então: pegue e leia.

 

A tua palavra é lâmpada para os meus pés e luz para os meus caminhos (Salmos 118 [119]:105).

 

 

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